Novas linhas de transmissão devem reduzir impacto da crise hídrica

Energia produzida em parques solares e eólicos precisa chegar até as unidades consumidoras

23 de setembro de 2021Infraestrutura

Até o brasileiro menos antenado sabe que o país vive a pior crise hídrica dos últimos 91 anos, já que isso tem resultado em aumentos no preço da energia consumida diante da necessidade do acionamento de usinas térmicas para manter o abastecimento do Sistema Interligado Nacional (SIN). 

Embora a falta de chuvas tenha o efeito inevitável descrito acima, já que a matriz energética brasileira ainda é predominantemente composta por hidrelétricas, a situação poderia ser menos grave se existissem mais linhas de transmissão para conectar parques eólicos e solares ao SIN, conforme apontam especialistas ouvidos pela reportagem.

“Hoje, muitas usinas - tanto solares quanto eólicas - não estão vertendo energia na rede porque não têm essa capacidade. Está se produzindo um fenômeno bastante triste, no qual se necessita de energia no Sudeste, existe a produção no Nordeste, mas ela não é aproveitada. Há urgência em canalizar essa energia excedente para que seja utilizada”, aponta Luis Fernandez Pita, diretor geral da Atlas Renewable Energy.

Este também é o principal gargalo para o diretor geral da Alupar, João Eduardo Pinheiro: “Nós antecipamos uma obra em mais de um ano que está sendo vital para escoar energia eólica do sul da Bahia. Esse corredor vem de Monções até Rio Novo do Sul, no Espírito Santo, e está ajudando a mandar energia dos parques eólicos”. A companhia está 100% focada nas transmissoras, segundo o executivo.

O presidente da Cemig, Reynaldo Passanezi, conta que a empresa acelerou o programa de investimentos previsto para os próximos cinco anos, com foco maior na área de distribuição: dentre os R$ 22,5 bilhões previstos, “R$ 12,5 bilhões serão destinados a projetos de distribuição para escoar a geração fotovoltaica, que vem crescendo muito em Minas Gerais”, diz o executivo.

A companhia tem atualmente 413 subestações e planeja construir outras duzentas, dentro de cinco anos, das quais oitenta até o final de 2023. Passanezi destaca ainda a inauguração da nova linha de transmissão da Taesa, situada em Janaúba (MG), com capacidade para escoar 1,6 mil megawatts (MW) de energia produzida em parques eólicos e solares do Nordeste para as regiões Sudeste e Centro-Oeste. 

No lado da demanda, a Cemig implementou um programa de eficiência energética com a substituição das lâmpadas fluorescentes para as de LED em 100% das escolas públicas, hospitais públicos e filantrópicos e unidades de segurança - incluindo o sistema prisional - do Estado de Minas Gerais. 

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Na avaliação do diretor geral da Atlas, haverá uma multiplicação das linhas de transmissão e a proliferação de usinas solares mais próximas das fontes de consumo nos próximos anos. “Acho que há solução no curto prazo. Uma usina solar é construída em 12 a 15 meses, mais um período semelhante para o licenciamento, ou seja, é um prazo relativamente curto”, indica. 

“O governo está trabalhando na ampliação das linhas de transmissão, existe um plano ambicioso para reforçar as linhas e as subestações entre os dois mercados, e certamente haverá um reequilíbrio da matriz tradicional com a matriz futura, que vai se desenvolver no Brasil”, acrescenta Luis Pita. 

Usinas solares e eólicas predominam em novos projetos de geração

Com pequenas centrais hidrelétricas (PCH) e usinas hidrelétricas (UHE) espalhadas por São Paulo, Rio Grande do Sul, Goiás e Amapá, a Alupar planeja aumentar a participação da energia eólica em sua matriz de geração. Atualmente, a fonte é responsável por 100 MW, enquanto as hidrelétricas respondem por 550 MW.

“Temos um complexo com cinco parques eólicos em Aracati, no Ceará, e começamos agora a implementação de uma nova unidade em Natal. Também queremos implementar um parque solar no complexo de Aracati, estamos aguardando a resolução de algumas questões regulatórias. Os dois projetos somam 120 MW”, revela João Eduardo Pinheiro. 

A Cemig gera 6 GW atualmente, sendo 100% via fonte hídrica. “Estamos expandindo para as fontes renováveis intermitentes. Nosso objetivo é colocar 1 gigawatt (GW) de capacidade até 2025 em usinas solar e eólica em Minas Gerais. E tem outros 6 GW em estudos, que devem ser mais solar do que eólico, dada a vocação do Estado”, conta Passanezi. A companhia também vai investir R$ 1 bilhão em geração distribuída, o equivalente a cerca de 200 MW. 

Com foco na geração de energia solar centralizada, a Atlas tem em construção 700 MW de capacidade instalada para clientes diretos em contratos bilaterais, além de 400 MW direcionados para a rede via mercado regulado. “Vamos começar os investimentos em energia eólica, também. Devemos ter algum projeto em 2022”, afirma o diretor geral da companhia. 

“Estamos criando um caminho de menor dependência das hidrelétricas. Projetos como Belo Monte e Santo Antônio não acontecem mais, até pela questão ambiental. O último foi Tapajós, que tem problemas sérios, até pela proximidade a comunidades indígenas. Isso inviabiliza o projeto”, pontua a sócia do escritório TozziniFreire, Ana Carolina Calil. 

Por outro lado, a executiva alerta para os gargalos no planejamento setorial, com avanços lentos do ponto de vista regulatório em novas soluções, como as agendas do hidrogênio, do gás natural liquefeito (GNL), das eólicas offshore e das usinas híbridas. Sobre esta última, o presidente da Cemig faz coro à importância da regulamentação, já que o modelo está nos planos da companhia.

“Existem possibilidades de regulação que precisam ser desenvolvidas para permitir garantia firme em plantas híbridas, que melhoram muito a infraestrutura. É muito mais barato colocar um parque solar em uma infraestrutura eólica, pois já tem o terreno, as conexões. O setor vai passar por um rearranjo que vai envolver solar, eólica e armazenamento de energia. Lá na frente, o hidrogênio também”, prevê Passanezi. 

Marco da geração distribuída e fim dos incentivos são importantes

A sócia do TozziniFreire destaca a importância da aprovação do PL 5.829/2019, chamado de marco legal da geração distribuída (GD). Hoje, a GD solar já está presente em mais de 560 mil unidades consumidoras. “A versão final do PL aprovada na Câmara tentou conciliar o interesse de todos os envolvidos, principalmente os agentes de GD e as distribuidoras”.

Segundo Calil, o ponto central da conciliação é a cobrança da rede: “Existia uma grande discussão no sentido de permitir a geração própria, mas sem tirar a receita da distribuidora, que disponibiliza o acesso à rede. No longo prazo, essa perda de receita poderia resultar em discussões de reequilíbrio econômico-financeiro porque a distribuidora perde mercado”.

“O PL cria uma espécie de regime progressivo para a cobrança das tarifas de uso da rede. No prazo de seis anos, o percentual vai aumentando justamente para que não prejudique de partida quem deseja colocar os sistemas de GD. Então há o fomento para o crescimento desses projetos e, com o passar dos anos, o valor que precisa contribuir para o sistema vai aumentando para não prejudicar a rede”, explica Calil.

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Também haverá menos incentivos na geração centralizada, tanto solar quanto eólica. O projeto de lei 14.120/2021 prevê que usinas autorizadas depois de 1º de março de 2022 não tenham mais direito aos descontos na “tarifa fio” tanto para os serviços de transmissão (TUST) quanto para os serviços de distribuição (TUSD). Hoje, projetos de geração de energia renovável intermitente têm descontos de 50% a 100% nas tarifas de conexão à rede. 

“Os novos projetos autorizados até 1º de março ainda terão o benefício, desde que entrem em operação no prazo de até 48 meses”, explica Ana Carolina Calil. As usinas vigentes também continuarão recebendo os descontos, respeitando o princípio do direito adquirido. “Daqui até março do ano que vem, deve haver um crescimento das solicitações para garantir o benefício”, prevê a executiva.

Para o diretor geral da Atlas, o setor pode - e deve - viver sem subsídios. “Eles fazem sentido quando se está inserindo uma nova tecnologia no país e há pouco volume, precisando de uma certa ajuda até caminhar sozinho. Quando chega o momento no qual se alcança a competitividade com outras fontes mais maduras, que é o caso, não tem sentido nenhum”, opina Luis Pita.

Preço elevado ainda será realidade em 2022

A Câmara de Regras Excepcionais para a Gestão Hidroenergética (CREG) editou recentemente duas resoluções para enfrentamento da crise hídrica: criação de novo patamar de bandeira tarifária, com custo de R$ 14,20 a cada 100 KWh de consumo, até abril de 2022, e o lançamento de um programa de incentivo à redução voluntária. 

“Caso não fosse estabelecido esse aumento agora da bandeira tarifária, os custos seriam repassados com uma defasagem de até um ano aos consumidores, no próximo reajuste de sua distribuidora, com a incidência de juros. Com o instrumento da bandeira tarifária, o consumidor é informado de imediato quando o custo de produção da energia está mais caro e, assim, ele pode adequar seu nível de consumo”, diz nota do Ministério de Minas e Energia (MME) enviada ao GRI.
 
O programa de incentivo à redução voluntária terá vigência até dezembro de 2021. “Consumidores residenciais, pequenos comércios e rurais que reduzirem seu consumo em 10% em relação à média do que foi consumido nos mesmos meses de 2020 receberão um bônus de R$ 50 para cada 100 KWh. O bônus será pago em janeiro e é limitado à redução máxima de 20%”, informa o MME.
 
A expectativa é que haja redução média na demanda equivalente a 914 MW, ou 1,41% do SIN. O bônus deve custar cerca de R$ 339 milhões por mês. “É preciso destacar que o pagamento pelo bônus acaba sendo mais vantajoso para o sistema. Isso se explica porque atualmente estão sendo despachadas térmicas com custos muito maiores, como a UTE William Arjona, localizada no Mato Grosso do Sul, que tem um custo variável superior a R$ 2 mil reais por MWh”, defende a nota.
 
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Para o presidente da Cemig, as medidas tomadas são ambiciosas e devem ter efeito: “Eu, particularmente, acho que essas medidas para o consumidor cativo e de redução voluntária para a indústria têm um potencial muito grande, junto com todo despacho de termelétrica, mais a importação de energia”.
 
Passanezi descarta a possibilidade de racionamento, mas acredita que os preços continuarão altos no ano que vem: “Vamos conviver com preços muito altos por um período porque a termelétrica é cara, mas é melhor do que ter que fazer racionamento de energia. Não dá para sonhar - com a escassez hídrica - que o preço não vá subir. É lei de mercado”. 
 
Segundo Pinheiro, o ano que vem tem alguns atenuantes, já que muitos projetos de transmissão vão estar concluídos, permitindo o escoamento da energia produzida em parques eólicos e solares, principalmente no Nordeste, propiciando um alívio na carga. “Não acredito que vamos parar de usar as térmicas, então a perspectiva é que continue a bandeira vermelha”, encerra o diretor geral da Alupar.

Por Henrique Cisman