"O Plano Diretor de São Paulo é o contrário daquilo que se propôs a ser"

Representantes do setor imobiliário comentam diretrizes vigentes

5 de maio de 2021Mercado Imobiliário

Medida obrigatória para cidades com mais de 20 mil habitantes, o Plano Diretor tem como objetivo ordenar o crescimento e a ocupação dos municípios, segundo Rodrigo Bicalho, sócio do escritório Bicalho, Mirisola, Bresolin, Dias Advogados. Em São Paulo, metrópole com população estimada de 12,3 milhões de habitantes (IBGE), "o mecanismo é ainda mais importante", diz o advogado.

O atual Plano Diretor Estratégico (PDE) da capital paulista foi definido em 2014, durante o governo do ex-prefeito Fernando Haddad. O documento visa incentivar o uso de transporte coletivo, adensar áreas nas quais sua oferta é mais vasta, fomentar a Habitação de Interesse Social (HIS), construir edificações de caráter misto, limitar a verticalização e alavancar o retrofit.

"Na sequência do Plano Diretor, foi alterada uma série de outras normas para implementá-lo, como a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo [Zoneamento], em 2016, e o Código de Obras, em 2017", revela Bicalho. Com prazo de vigência até 2029, o PDE tem uma revisão prevista para este ano, estabelecida em seu artigo 4°.

Mesmo entendendo as complicações impostas pela pandemia, o mercado imobiliário espera que o processo não seja adiado, uma vez que o atual PDE tem pecado em alguns de seus objetivos fundamentais. Claudio Bernardes, presidente do Conselho Consultivo do Secovi/SP, ressalta que "há uma determinação legal para que a revisão aconteça em 2021, de forma participativa".

César Azevedo, secretário municipal de Licenciamento de São Paulo, acredita que será possível cumprir o cronograma na esfera executiva: "A nossa ideia é encaminhar uma proposta de revisão do Plano Diretor à Câmara Municipal na primeira semana de dezembro", afirma ao GRI

Antes disso, a sociedade civil terá a oportunidade de debater a revisão do PDE em audiências públicas, conselhos participativos e deixar contribuições na plataforma digital. Para isso, é necessário que as entidades se
inscrevam no chamamento público até 11 de maio.

Quem também deve participar do processo é a Universidade de São Paulo (USP). Segundo Azevedo, a academia será parceira da prefeitura na construção de diagnósticos sobre o atual funcionamento do Plano Diretor, que envolvem questões como urbanismo, habitação e mobilidade.

O secretário de Licenciamento também lembra que o PDE foi amplamente elogiado e venceu um prêmio da ONU, mas reconhece que não teve a efetividade que se esperava na criação. Mesmo assim, garante que não deve haver grandes mudanças no projeto: "É necessário deixar claro que não será criado um novo Plano Diretor. Isso tem sido um mantra para nós".

Carlos Terepins, CEO da Nortis, pensa de maneira semelhante: "Foi um plano formulado com boas intenções no sentido de democratizar o acesso à moradia na cidade, mas evidentemente que, para que isso se torne realidade, é preciso reequilibrar vários conceitos na revisão". 

Adensamento urbano

Se um dos objetivos do atual Plano Diretor de São Paulo é facilitar o acesso à moradia e adensar locais com grande oferta de transporte público, restrições construtivas impostas na capital paulista têm atuado como adversárias nesse quesito.

"Apresentando maior potencial construtivo que o restante da cidade, os eixos urbanos [ZEUs] têm sido muito disputados pelas incorporadoras, o que gerou hiperinflação de terrenos nesses locais. O intuito do plano, que era de baixar o preço das unidades, teve um efeito contrário. Obviamente que quem paga por isso é o usuário final", assegura Denis Espinosa, diretor da CBRE.

Isso porque nas Zonas Mistas (ZM), que abarcam grande parte da cidade, o coeficiente de aproveitamento máximo é de duas vezes, o limite de gabarito de altura é de 28 metros e é cobrada a outorga onerosa. A situação é a mesma nas Zonas de Centralidade (ZC), havendo apenas um limite de gabarito de altura maior, de 48 metros. 

Estes são alguns fatores que encarecem ou inviabilizam projetos nestas áreas e deslocam os desenvolvedores imobiliários para os eixos urbanos, que podem vir a ter coeficiente de aproveitamento máximo de quatro vezes a área do terreno - mediante pagamento de outorga onerosa - e gabarito de altura sem limite.

"O Plano Diretor é elitista, exatamente o contrário daquilo que se propôs a ser. Via Lei de Zoneamento e Plano Diretor, a prefeitura distorce a oferta de terrenos. Hoje, só compra apartamento no centro expandido quem tem dinheiro para pagar caro", aponta Ricardo Pucci, CEO da Galli Investimentos e Participações.

"Se nada for feito, os terrenos no centro expandido ficarão cada vez mais escassos e caros, e a habitação continuará migrando para a periferia", acrescenta o presidente da Trisul, Jorge Cury, frisando que o adensamento na região central de São Paulo tem diminuído nas últimas décadas. 

O executivo se refere a um estudo realizado pelo Secovi/SP que indica que, de 1980 até hoje, o centro ampliado - um perímetro formado por Santo Amaro ao sul, Santana ao norte, Morumbi e Lapa a oeste, Mooca e Tatuapé a leste - efetivamente encolheu em 14% a sua população, enquanto a população periférica cresceu aproximadamente 60%.

Para o presidente do Conselho Consultivo da entidade, Claudio Bernardes, os dados revelam um processo de exclusão social, já que na periferia há apenas 9% das estações de metrô, 10% dos cinemas e teatros, 13% dos leitos hospitalares e 16% dos empregos formais. Fora isso, a expectativa de vida é 11 anos menor do que na região central.

Em relação ao
aumento nos preços de terrenos na capital paulista, a CBRE recorda que há outro importante vetor: a Cota de Solidariedade. A medida estabelece que todos os empreendimentos imobiliários com mais de 20 mil metros quadrados de área construída são obrigados a destinar o equivalente a 10% de sua área para HIS (Habitação de Interesse Social), restringindo o potencial uso para os desenvolvedores imobiliários. 

Investimento em infraestrutura

 Ao ver como é interessante a ideia de estimular o potencial construtivo nos eixos urbanos, o diretor-executivo de Incorporação da Tecnisa, Alexandre Mangabeira, alerta para outro empecilho: "A cidade não está 100% pronta em termos de transporte público para as pessoas deixarem de ter carro. É uma tendência, mas não uma regra".

Isso porque o Plano Diretor de São Paulo estabelece que, nos eixos urbanos, ficam sujeitas à cobrança de outorga onerosa as vagas de garagem que excedam o limite de "uma vaga por unidade residencial e uma vaga para cada 100 metros quadrados de área construída computável dos empreendimentos não residenciais".

Francisco Lopes, diretor de Real Estate da Participações Morro Vermelho, é um crítico deste tipo de determinação, entendendo que a lógica está invertida: "Em vez de definir o que se pode construir em função da infraestrutura disponível, deveria estabelecer qual é a infraestrutura necessária para possibilitar um potencial construtivo adequado à demanda de mercado. A produção imobiliária está limitada à infraestrutura urbana, que é trabalhada lentamente pelo poder público".

Autonomia do setor imobiliário

As normas construtivas nos eixos urbanos também contam com a Cota Parte Máxima, que estipula a quantidade de unidades habitacionais conforme a área do terreno. Segundo a CBRE, a média das unidades é em torno de 80 metros quadrados, obrigando o incorporador residencial a desenvolver apartamentos compactos, caso queira oferecer metragens maiores, mesmo que isso não seja interessante do ponto de vista mercadológico. 

No caso citado, a vaga de garagem dos studios é geralmente transferida para os apartamentos maiores, que ficam com dois espaços. O grande risco para a cidade é uma sobreoferta de micro unidades habitacionais: "O mercado está lançando de quatro mil a cinco mil studios por ano, sendo que a demanda basal sempre foi de dois mil apartamentos desse tipo por ano", informa Gustavo Vaz, investment manager da Cyrela Asset.

Portanto, as restrições impostas pelo Plano Diretor, em geral, têm reduzido a autonomia dos setor imobiliário na elaboração dos projetos. "Houve um engessamento da criatividade de arquitetos, incorporadores e investidores que está originando um excesso de produtos semelhantes nas mesmas regiões", aponta Luciano Amaral, diretor de Incorporação da Benx.

Verticalização

Um ponto importante que corrobora para o aumento no preço de terrenos e para a replicação de produtos imobiliários é o desincentivo à verticalização em grande parte da cidade. Por mais que apresentem maior gabarito de altura, os eixos urbanos correspondem a apenas uma pequena parcela do município, segundo o advogado Rodrigo Bicalho.

Para exemplificar a situação, Felipe Antunes, fundador da Next Realty, compara a capital paulista com outras metrópoles do mundo. "Em Nova York, próximo do Central Park, foi construído um prédio com 50 andares. A edificação pega a projeção do terreno, sem recuo lateral, e vai de fora a fora. Por que não fazemos assim aqui?", questiona.

"Prédios altos são muito mal vistos em São Paulo, o que vejo como uma interpretação errada. A partir do momento em que você verticaliza, libera as áreas do térreo para lojas e áreas verdes", complementa Dalton Guedes, diretor de Incorporação da Yuny.

Fachada ativa e fruição pública

Os dois elementos citados pelo executivo estão previstos no último PDE através do incentivo à fachada ativa e à fruição pública. Ambos aspectos foram, em geral, bem avaliados pelo setor imobiliário.

"O mix de residencial com comercial foi positivo porque evita aqueles cenários fechados, com muros, e incentiva o comércio de rua e o deslocamento à pé. A fruição também é legal, já que instala espaços de contemplação, em especial nos prédios corporativos", afirma Ana Carolina Norat, gerente de Aprovações da Even.

"Mesmo dentro de um espaço privado, existe uma área aberta no térreo. É possível conectar duas ruas através do prédio e permitir a circulação pública, o que faz todo sentido no estímulo ao transporte coletivo", garante Gabriela Gregori, valuation manager da CBRE, referindo-se à fruição pública.

Retrofit

Quanto ao retrofit, o Plano Diretor de São Paulo estabelece que, "no caso de demolição ou reforma de edificação existente para construção de moradia popular, é permitido o reaproveitamento de parte da infraestrutura, respeitando a mesma volumetria do prédio antigo".

O incentivo se mostra breve, uma vez que o intuito do PDE é adensar a área central da cidade, onde há uma série de prédios degradados ou subutilizados. Justamente por isso, Maxime Barkatz, fundador da Ilion Partners, entende que a revisão poderia oferecer mais benefícios para a revitalização de edificações.

"O Centro deve ser a área mais barata para se criar moradia por conta da infraestrutura. Por mais que a cidade tenha crescido bastante, transportes, empregos e serviços seguem geograficamente mais localizados na região central. Se tiver moradia no preço certo, tenho certeza que haverá adensamento", finaliza o executivo.


Por Daniel Caravetti