Setor elétrico busca solucionar deficiências do modelo atual

Para players, nova regulação deve ter regras claras de transição e eliminar insegurança jurídica.

23 de outubro de 2017Infraestrutura

O governo federal reconheceu a necessidade de aprimorar o modelo regulatório e comercial para o setor elétrico vigente no Brasil – instituído em 2004 – e cumpriu em julho e agosto uma importante etapa de reflexão ao colocar em consulta pública os rumos do sistema. 

O documento resultante, após análise detalhada das propostas, compilará as ideias debatidas com os agentes do mercado e deve ser enviado ao Congresso neste segundo semestre. A expectativa do Ministério de Minas e Energia é de que processo todo, dando origem a um novo marco do segmento, seja finalizado até o início de 2018.

“Trata-se de uma alteração bastante expressiva no modelo atual, que já mostra sinais de esgotamento. De fato, é a criação de um novo modelo”, constata Bruno Crispim, associado ao escritório Demarest Advogados.

“Regular é extremamente difícil. Como o que diferencia o remédio do veneno, é preciso saber dosar o quanto de regulação e de abertura se precisa oferecer, mas as pessoas que estão no governo são extremamente capacitadas para isso”, afirma Marcos Meireles, CEO da Rio Energy.

O importante agora é que as regras de transição sejam implementadas de forma clara e transparente, defende Bruno. "O mercado não aguenta mais insegurança jurídica”, ressalta ele.

Propostas incorporadas

Entre as propostas incluídas na consulta pública, estão a autorização para a entrada de novos agentes geradores no sistema, com a redução gradual dos limites para acesso ao mercado livre e novas regras de autoprodução. Foram incorporadas também medidas de destravamento do setor, passando por mecanismos de formação de preço e pela segregação de lastro (capacidade) e energia (geração).

Outras soluções visam a sustentabilidade do segmento. Incluem-se aí o fim do sistema de cotas imposto no adiantamento da renovação de concessões de geradoras, o retorno da Reserva Global de Reversão (RGR) – com a destinação de seus recursos para pagamento de indenizações de concessões de transmissão – e a antecipação da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE).

Fora dos tribunais

Em meio a uma diversidade de demandas do setor, a mais premente diz respeito à desjudicialização. A revisão do marco regulatório pretende eliminar a enxurrada de ações na Justiça que chegaram a travar, em alguns momentos, a contabilização do Mercado de Curto Prazo (MCP) de energia. As contendas envolvem uma série de questões e provocam custos de bilhões de reais à sociedade.

A meta é eliminar o impulso de ir à Justiça contra o Generation Scaling Factor (GSF), controvérsia que já acumula um passivo de R$ 1,6 bilhão no mercado de curto prazo. Para isso, o governo propõe retroagir os custos a 2013, com compensação mediante extensão de período de outorga a quem desistir da ação judicial, alcançando toda a energia não-repactuada.

O GSF – relação entre o volume de energia gerado pelo Mecanismo de Realocação de Energia (MRE) e a garantia física total desse instrumento – atribui aos geradores hidrelétricos todo o risco hidrológico relativo à sua participação. O Ministério de Minas e Energia tem dito que um acordo somente será possível se houver renúncia às ações.

“Penso que isso poderia ser corrigido acabando com o GSF e estabelecendo o ressarcimento do produtor de energia pela taxa de remuneração teto do investimento. Assim, o dono da usina ganharia R$ 100 pelos R$ 100 produzidos”, sugere Augusto Francisco da Silva, diretor técnico e comercial da Celg GT.

Bruno Crispim considera, entretanto, que quem tem demandas relativas à CDE não deve se motivar a desistir das ações em troca do parcelamento dos débitos judiciais, pois já há posicionamento favorável a eles no Poder Judiciário. Por sua vez, a disputa por indenizações às transmissoras dependeria de o governo disponibilizar recursos da RGR.

Preço e concessões

Um ponto em que ainda será necessário evoluir é a compatibilização do preço da energia com a demanda, destaca Augusto. "A tarifa hoje é muito alta por conta de deficiências do modelo, e a proposta do governo não muda isso”, afirma.

“Ao olhar para o futuro, só vejo uma escalada de preços. A componente de encargos e tributos é muito pesada e a revisão do modelo não mexe nesse aspecto”, reclama. Para ele, a melhor solução seria não mais regular a energia pelo preço, e sim pela taxa de retorno. 

Outra preocupação é com o rumo das antigas concessões. “Para que deixar vencer uma concessão de 30 anos se o agente presta um bom serviço e o ativo é útil? O consumidor já pagou pela usina, mas, ainda assim, o governo coloca valor de outorga onerosa no ativo amortizado”, critica Augusto.

Lastro e energia

Na perspectiva de Marcos, da Rio Energy, um dos maiores desafios é viabilizar a proposta de desvincular lastro e energia, “principalmente porque o mercado ainda não tem uma formação de preços de curto prazo bem definida”. Uma adequada sinalização de preços será crucial.

De acordo com ele, o histórico nacional de Preço de Liquidação das Diferenças (PLD) não ajuda “porque foi manipulado ao longo do tempo”. Além disso, a transição pode ser bem difícil, aponta.

“Hoje, o consumidor cativo é o único que banca toda a segurança do sistema. O consumidor livre tem pegado sobras de mercado e contratos antigos, que não precisam mais de remuneração tão alta. Com a mudança proposta, ele também vai começar a pagar o lastro”, calcula.

Marcos propõe uma forma de fazer uma transição mais suave à nova realidade, até porque a formação de preços de curto prazo mais críveis deve tomar cerca de cinco anos para ser consolidada. A sugestão é ter um meio-termo nesse período.

“Em vez de dividir lastro e energia agora, com leilões independentes, o governo poderia continuar oferecendo leilões PPA [Power Purchase Agreement] full e passar a observar os contratos de energia livre transacionados. O que superar o valor de transação no mercado livre valeria como preço do lastro, e essa diferença seria rateada por todos os consumidores, cativos e livres”, indica.

“A segregação é benéfica, mas preocupa, pois pode prejudicar o financiamento de novos projetos de lastro”, afirma Rodrigo Pedroso, CEO da Total Energia. Na visão dele, o novo marco busca eficiência, equidade e sustentabilidade, e isso só será atingido caso resolva o maior problema da infraestrutura no Brasil, que é contar com mais fontes de financiamento.

Papel das distribuidoras

Rodrigo entende que, no novo horizonte, as distribuidoras precisarão se reinventar, se tornando grandes provedoras de infraestrutura. “A venda de energia não é um business interessante. O lucro é mínimo”, aponta.

Para Marcos Meireles, o marco regulatório deve dar espaço para que as distribuidoras se reinventem.“Elas podem ter negócios adicionais associados ao serviço de distribuição”, diz.

“Daqui a 20 anos, teremos carros elétricos e autônomos. A distribuidora pode ser a dona da frota dos carros, por exemplo. Ela conhece os clientes, tem os pontos de conexão que podem abastecer a rede com bateria e também pode usar o pessoal de manutenção da rede para fazer a manutenção dos carros”, vislumbra Marcos.

Novas possibilidades

A sustentabilidade do sistema passa pela possibilidade de novas fontes energéticas, como o modelo reservoir-to-wire (R2W), praticado pela Eneva, de geração térmica de energia elétrica nas proximidades dos campos produtores onshore (em terra) de gás natural. 

Romulo Florentino, executivo de Relações Institucionais da companhia, considera que “o modelo poderia ser replicado por outros agentes, em diferentes lugares do Brasil, com ótimos ganhos inclusive sociais”.

A opção alcança um debate mais amplo, de um novo perfil para a matriz energética brasileira. “A composição da matriz deve ser definida por uma estratégia do governo, que até agora não disse quando quer vê-la limpa de novo. Isso é crucial”, aponta Augusto Silva. “No mínimo, deveríamos estar enchendo nossos reservatórios com energia solar. É um sonho do mundo ter bateria para acumular e armazenar energia. Nós temos condições de fazer isso e estamos desperdiçando”, completa.

“Historicamente, a demanda energética cresce 1,5% acima do PIB. Temos recursos renováveis em abundância para fazer com que essa mudança ocorra de maneira harmoniosa”, pontua Rodrigo Pedroso. “O que vai resolver é a combinação ótima de todos os recursos disponíveis.”