Procurador do MP/TCU: não à flexibilização de contratos

Para Júlio Marcelo de Oliveira, não cumprimento do estabelecido pode fragilizar modelo de concessão.

20 de abril de 2018Infraestrutura

O procurador Júlio Marcelo de Oliveira, membro do Ministério Público de Contas que atua perante o Tribunal de Contas da União, se tornou nacionalmente conhecido pelo protagonismo na denúncia das 'pedaladas fiscais' do governo Dilma Rousseff. Nos últimos tempos, é o setor de infraestrutura que tem sido alvo de sua maior atenção.

Objetivo e muitas vezes polêmico, ele participou de um club meeting do GRI recentemente e, na ocasião, concedeu entrevista exclusiva à GRI Magazine. Nela, reitera a defesa do cumprimento estrito dos contratos de concessão, com raríssimas exceções, para evitar a fragilização do modelo, estimular propostas realistas e favorecer o amadurecimento do mercado. Também advoga um Estado menos empresário e mais regulador, com espaço para a privatização de 'jóias da coroa', como Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil. Acompanhe: 


Em linhas gerais, qual é a sua avaliação sobre o atual quadro de concessões de transportes no Brasil?
Há um esforço do governo para dar continuidade e efetividade ao programa de parcerias. Ele quer fazer novas licitações e tem intenção manifesta de prorrogar contratos em curso. No ano passado, minha percepção era de que as coisas seriam um pouco mais rápidas do que se mostraram. Pode ser que me surpreenda, mas sinto que esse ritmo vai se repetir em 2018. Não vejo muitas condições objetivas para agilidade – e acho que fazer rápido não quer dizer necessariamente que seja bom. É preciso ter cuidado e assegurar qualidade nesse processo, pois estamos formatando parcerias para décadas. Se forem muito bem feitas agora, vão dar tranquilidade para todos depois. Teremos usuários atendidos, empresas satisfeitas e futuros governos sem problemas para equacionar. Aquilo que esta gestão efetivamente conseguir fazer será ótimo, desde que com qualidade. Aquilo que não puder concluir, contanto que deixe bem encaminhado para a próxima, será um bom legado.

Muitas concessionárias vêm pleiteando ajustes em contratos em vigor, argumentando que teriam sido mal formatados ou precisariam de alterações em função de mudanças no cenário nacional. Você, por outro lado, tem defendido o cumprimento dos acordos ipsis litteris. Como chegar a uma solução de consenso?
O eixo de orientação dos órgãos de governo deveria ser realmente restritivo quanto à possibilidade de repactuação dos contratos. Tudo aquilo que já estiver claro que é risco da concessionária não tem de dar ensejo a repactuação. Há muita flexibilidade para mudança de obras. Vemos situações em que estava prevista uma obra com determinadas características; entretanto, a concessionária propõe que seja feita outra, com atributos às vezes mais exuberantes e custo superior, e, com isso, pleiteia uma tarifa maior. Esse tipo de situação às vezes é visto com certa boa vontade, mas não deve acontecer, partindo do pressuposto de que a obra original estava adequadamente alinhada com os objetivos da concessão.

Em alguma circunstância, a flexibilização pode fazer sentido?
Sim. Pode, por exemplo, acontecer um aumento imprevisto de demanda num ponto de uma rodovia. Isso tem de ser analisado com racionalidade e tranquilidade. Não se trata de uma posição dogmática e radical de que nada pode ser modificado. O que não pode existir é uma postura de flexibilidade simplesmente porque se acha que é conveniente. Se houver necessidade comprovada, não vejo razão para não fazer a readequação do contrato. 

Enxerga algum risco de insegurança jurídica?
É ruim que a todo momento ocorram pleitos de aditivos para adequação financeira de contratos e remodelagem de obrigações, uma vez que isso cria insegurança jurídica e fragiliza o próprio modelo, tornando-o mais sujeito a questionamentos. Significa que o processo lá atrás não foi bem feito como deveria. 

O que pensa sobre a atuação da ANTT nesses imbróglios?
Em algum momento, a ANTT foi muito benevolente na análise dos pleitos; porém, tenho percebido que, num processo de diálogo que a agência tem mantido com os órgãos de controle, está havendo uma aproximação. Não digo que seja uma convergência, mas pelo menos uma aproximação de pontos de vista que pode permitir construir uma linha de pensamento mais homogênea entre os órgãos de controle, as agências e os organismos do Executivo. 

Em agosto passado, você pediu a suspensão do processo de renovação antecipada do contrato da Malha Paulista à Rumo. O que pode adiantar sobre o andamento desse assunto?
Esse processo da Rumo foi anunciado como algo decidido e resolvido. Veio a Medida Provisória [752/16], que depois virou lei [13.448/17] e estabelece um critério absolutamente necessário para qualquer prorrogação: a demonstração de ser mais vantajosa do que a realização de uma nova licitação quando o contrato acabar. Contudo, o que verificamos é que essa comprovação não tinha sido feita por nenhum órgão do governo. Havia uma portaria do Ministério dos Transportes dizendo que a orientação do governo era prorrogar, mas sem nenhuma justificativa. Ainda agora não está claro dentro dos órgãos do governo quem tem a responsabilidade de fazer esse estudo. O TCU está pedindo que haja uma manifestação nesse sentido, com a definição de quem vai ficar a cargo da tarefa. Essa é uma condição necessária para que o processo caminhe. Se não ocorrer a demonstração, não há como fazer prorrogação.

Qual a sua análise sobre as novas regras para leilões de rodovias, que buscam inibir lances considerados irresponsáveis?
Se vão ser suficientes para evitar problemas como os atuais no futuro, ainda não posso afirmar, mas avalio que estão na direção certa. Outro passo a ser dado é aumentar o prazo entre os editais e as licitações para no mínimo 180 dias. Um período maior favorece que as empresas tenham mais conhecimento da realidade do negócio ao qual vão se candidatar e possam fazer propostas mais realistas. Todavia, o que vai gerar propostas mais responsáveis é uma cultura que precisa se estabelecer de atos e consequências. Quando vigora uma cultura de muita flexibilidade contratual, gera-se uma sensação de que se pode arriscar mais porque depois é viável contar com a boa vontade do governo. Se ele adota uma postura mais restritiva, induz as companhias a fazerem propostas mais realistas, pois sabem que vão ter de arcar com as decorrências. Isso amadurece o mercado e afasta aventureiros.

Que papel, na sua visão, cabe a um Estado brasileiro moderno? Necessariamente passa por abdicar do ofício de empresário?
Estatais que tinham um desempenho bom passaram a apresentar performance muito melhor depois de privatizadas e a gerar mais valor para a sociedade por meio de arrecadação de tributos. Além disso, diminui-se o espaço de colonização política e corrupção. Muitas vezes, a presença do Estado deforma o mercado, inibe que outros players participem dele. O caminho para o País é um Estado menos empresário e mais regulador, o que vai ajudar a termos mais sociedade e menos governo.

A privatização das centenas de estatais é inevitável? 
Isso precisa ser analisado caso a caso. Há que se entender qual é a empresa, de que mercado se trata, como está a disposição dos setores para atuar ali e quem são os players interessados, para então se fazer uma modelagem que maximize o retorno não só financeiro da operação, mas de funcionamento sadio do mercado depois.

Como analisa o processo de privatização da Eletrobras, em curso?
Vejo de maneira positiva. O governo está na direção certa.

Acredita em efetivas chances de que instituições como Banco do Brasil, Caixa e Petrobras passem às mãos da iniciativa privada?
Tivemos um movimento tão forte de consolidação bancária no Brasil que hoje existem cinco bancos de varejo grandes – e dois deles são públicos. Ambos, junto com o BNDES, respondem por 50% do crédito no País. Por que uma presença do Estado tão expressiva nesse setor? Em inúmeras cidades, há uma agência do Banco do Brasil e uma da Caixa, duas instituições gigantes concorrendo entre si. Faz sentido o governo ter dois bancos tão grandes? Acho que não. A privatização dessas instituições – no mínimo de uma delas e por que não as duas – não traria nenhum prejuízo à sociedade. Pelo contrário, seria bastante positiva. A presença de um banco público para ajudar a formar o mercado quando incipiente se justifica, mas, no caso brasileiro, de um mercado bancário sofisticado e desenvolvido, não.

 

Veja esta e outras reportagens na 9ª edição da GRI Magazine Infrastructure