O que está em jogo na concessão da Linha Amarela no Rio de Janeiro

Populismo político e ausência de freios no Judiciário afugentam investimentos na infraestrutura subnacional

26 de fevereiro de 2021Infraestrutura

Um dos casos mais comentados na infraestrutura subnacional nos últimos dois anos, seja pelo caráter midiático que as ações da Prefeitura do Rio de Janeiro tiveram, seja pelo temor de investidores acerca do tema, a encampação da Linha Amarela no Rio de Janeiro - trecho que liga a Baixada de Jacarepaguá à Ilha do Fundão - ganhou novos contornos nos últimos dias. 

De acordo com Marcus Rosa, superintendente da Lamsa, concessionária responsável pela administração da via, desde segunda-feira (22) forças da prefeitura ocupam o prédio da empresa, impedem a circulação de veículos e colaboradores no trecho e afirmam que a partir deste sábado (27) “a concessionária sairá de lá de qualquer maneira”. 

Há mais de cinco meses sem poder cobrar pedágio, após decisão monocrática favorável à prefeitura, do ministro do Superior Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Humberto Martins, que é presidente da casa, a Lamsa caminhava para uma negociação com a prefeitura, segundo apurou o GRI Club, mas na última reunião entre as partes a administração municipal mudou o interlocutor e determinou que o valor do pedágio fosse reduzido dos atuais R$ 7,50 para R$ 3.

A negociação ocorria após o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mediante solicitação da Lamsa, dar 30 dias para a prefeitura tomar medidas cabíveis a respeito da concessão ou, do contrário, a concessionária poderia voltar a efetuar a cobrança das tarifas - o prazo se encerra neste final de semana. 

“O processo administrativo de encampação não foi feito, o cálculo da indenização não foi realizado nem a lista dos bens reversíveis foi discutida. Mesmo assim, a prefeitura está lacrando nossos veículos. Teve um dia que a ambulância sequer conseguiu sair [da garagem] para o posto de atendimento porque havia uma viatura da guarda municipal impedindo a passagem”, conta o representante da Lamsa.

“É um ato totalmente ilegal e arbitrário, que constrange os colaboradores - para tentar nos tirar de lá - ao ocupar a sede, ao querer bloquear bens para fazer inventário, ao pedir login e senha dos nossos sistemas. Se a prefeitura quer encampar, tudo bem, ela tem esse direito, mas tem que se fazer o devido procedimento de encampação”, completa o executivo. 

Para Letícia Queiroz, sócia-diretora da Queiroz Maluf Sociedade de Advogados, o caso da Linha Amarela é extremamente infeliz porque além das irregularidades cometidas pela prefeitura, segue um percurso que não é usual no Poder Judiciário. “O que costumamos dizer ao investidor é que ele estará exposto a uma decisão como essa na primeira instância, de um juiz que resolva tomar decisões sem considerar o contrato e a lei, mas que quando o processo chegar ao STJ ou ao STF, haverá uma corte mais distante da pressão local e política e mais próxima da análise técnica e jurídica. Só que a decisão no caso da Lamsa vem para esvaziar esse discurso, que até então era verdade”, afirma.

Ainda segundo Queiroz, há outros casos pelo Brasil nos quais o Poder Judiciário em primeira instância, permeável ao poder político local, fez má aplicação do contrato e da lei, porém as decisões sempre foram cassadas em tribunais superiores. “O caso da Lamsa é muito ruim porque é um furo nisso: a decisão veio do STJ. Isso deixou a comunidade jurídica chocada e gerou impactos no setor”, completa. 

Sancionada em 1995, a Lei Federal nº 8.987 traz mais de uma possibilidade de extinção antecipada das concessões, sendo as mais usuais a caducidade, quando ocorre por culpa da concessionária; a encampação, sem culpa da concessionária; e o acordo entre ambas as partes. 

De acordo com Letícia Queiroz, como não há acordo, em qualquer das outras duas possibilidades é necessário haver um processo administrativo. No caso de encampação, a ausência desse procedimento é ainda mais grave: “É necessário que haja uma autorização legislativa para depois abrir um processo, ouvir a concessionária, calcular a indenização e pagá-la antes. Isso não é o Brasil que prevê; esse rito é em qualquer lugar do mundo”, aponta.

Para a ex-diretora de Assuntos Institucionais da Artesp (Agência de Transporte do Estado de São Paulo), Renata Dantas, a condução da prefeitura na Linha Amarela é extremamente questionável. Para ela, ainda que houvesse culpa da concessionária, seria preciso abrir processo para apurar falhas, constatá-las com pareceres técnicos, dar tempo para correção e, finalmente, se necessário, caminhar para a caducidade, sem desrespeitar o direito ao contraditório. 

“A impressão que dá é que tudo foi sendo montado conforme a necessidade para acabar com essa concessão. É muito preocupante quando o Poder Judiciário embarca na lógica de chegar à solução que se quer, não importa como”, diz.

A título de comparação, Dantas relembra um episódio de 2015, quando a Justiça de São Paulo proferiu sentença contrária à AutoBAn, em favor do Governo do Estado. “A decisão dizia que a prorrogação do contrato poderia ser anulada, mas o governo teve a preocupação de não executá-la prontamente considerando o impacto que isso teria sobre os investidores. A opção que se buscou foi a preservação máxima das pactuações contratuais”, conta a ex-diretora da Artesp. 

“O recado que seria transmitido é o oposto daquele que se deseja ao pensar em novas concessões, em investimento privado. Qualquer investimento privado tem medo de canetada. Nesta ocasião, fizemos um trabalho de advocacy muito intenso. Em meus últimos três anos de mandato, toda semana eu ia falar com investidores para que eles soubessem o que o regulador estava fazendo. Hoje, no Rio de Janeiro, eu não teria explicação para dar”, completa. 

Impacto sobre novos investimentos

Segundo José Guilherme Souza, managing partner e head of infrastructure investments da Vinci Partners, os investidores estão muito preocupados com o que ocorre na Linha Amarela do Rio de Janeiro. “O movimento assusta, afasta os investidores, e com a gente não é diferente”, afirma. 

Souza critica o desrespeito ao contrato: “Não precisa fazer coisa midiática. Quando o investidor entra em um investimento de longo prazo, a primeira coisa a se fazer é olhar o contrato, pensando no que pode acontecer ao longo do tempo, se esses eventos estão previstos no contrato. Esta é uma situação [a encampação da Linha Amarela no RJ] que é prevista em contrato, é só cumpri-lo”.

Além de aumentar o risco e, consequentemente, o preço dos serviços a serem realizados, muitas vezes o investimento sequer é aprovado em razão de tal incerteza. “Incerteza, na maioria das vezes, não consegue ser mitigada ou precificada, diferente do risco. Esse tipo de ação gera uma incerteza que impede a aprovação de novos investimentos”.

“Esse tipo de coisa reforça uma percepção geral que o mercado tem de que ativos que estão sujeitos à regulação ou a interferências dos poderes subnacionais tendem a ser mais arriscados e atrair menos capital do que aqueles que são regulados em âmbito federal. O que pode vir a acontecer é haver cada vez menos apetite para esses ativos”, completa o executivo.

Em linha com a visão de Souza, Renata Dantas afirma que o Governo Federal tem pessoas muito capacitadas para conduzir a agenda de concessões e que o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, tem um perfil “discreto”, o que é “excelente” neste sentido. “É importante que a discussão a respeito de concessões seja estritamente técnica”, pontua.

Letícia Queiroz também avalia o impacto na infraestrutura subnacional: “As concessões federais até estão indo bem, mas o ministro Tarcísio vai falar das futuras negociações e perguntam para ele sobre o que está havendo com a Lamsa. Então, assim, é uma decisão muito ruim não só para a concessionária, mas porque tem esse efeito contaminante para novas concessões de rodovias e de outros ativos de modo geral”, ressalta. 

Outro exemplo, segundo Queiroz, são obras de saneamento básico: “As concessões são feitas com os municípios; o investidor fica morrendo de medo porque pensa: ‘Quem disse que não sou o próximo? Até o STJ’”.

Parte envolvida no episódio da Linha Amarela, cuja concessão vai até 2037, Marcus Rosa, superintendente da Lamsa, questiona: “Como a prefeitura garante para o investidor que os 16 anos que ele ainda têm de fluxo de caixa vão ser ressarcidos? Quer dizer: cria-se uma insegurança jurídica muito grande”. 

“O Rio de Janeiro precisa de investimento, tanto o estado quanto a cidade. Como o investidor vai olhar para o Rio de Janeiro? O prefeito Eduardo Paes assinou o último aditivo [em 2010] e agora quer desfazer o que ele mesmo assinou e, pior de tudo, sem sequer realizar o processo administrativo dentro da lei. Como vai trazer o investidor? É essa a mensagem que a cidade quer passar?”, completa Rosa.

Confira na imagem a seguir a linha do tempo produzida pelo GRI Club do contrato de concessão da Linha Amarela.


Presidente da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR), Marco Aurelio de Barcelos classifica a investida iniciada pelo anterior prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, como “caricata”, e acredita que a encampação da Linha Amarela será um caso isolado. 

“Houve ingredientes conjugados que acabaram viabilizando a decretação da encampação. Perceba que judicialmente sempre houve a tentativa de se buscar guarida do Judiciário, que sempre veio a contento, com exceção de uma decisão, que hoje prevalece, que é a do ministro [Humberto Martins] do STJ”, afirma Barcelos.

Quais são as acusações da prefeitura?

Em resumo, a Prefeitura do Rio de Janeiro alega que houve sobrepreço de quase R$ 100 milhões nos investimentos realizados pela Lamsa a partir de 2010, que somaram R$ 251 milhões e resultaram na prorrogação do contrato por mais 15 anos. A Lamsa não reconhece a alegação e diz ter notas fiscais de todos os investimentos feitos.

Um segundo argumento trazido pela gestão Crivella e mantido pelo atual prefeito Eduardo Paes é que a Lamsa teria faturado mais do que deveria devido ao volume de tráfego maior do que o previsto em contrato. Pelas contas da prefeitura, a Linha Amarela deve algo como R$ 1,6 bilhão ao município porque teria cobrado tal quantia indevidamente da população. 

Até a decisão do ministro Humberto Martins, havia 18 liminares favoráveis à Lamsa no sentido de que a Linha Amarela está correta, já que o risco do tráfego é da concessionária. O próprio tribunal de contas do município afirmou que entende as alegações da prefeitura, mas que a cláusula do risco de tráfego é válida juridicamente e que, se a prefeitura quiser, deve ser feito um compartilhamento desse risco de agora em diante.

Com base em ambas alegações, a prefeitura entende que pode acabar com o contrato de concessão porque na obrigatoriedade de pagar uma indenização à concessionária, isso já estaria acertado com o que a Lamsa teria faturado indevidamente a mais até o momento. O grande ponto questionado pela empresa, por advogados e investidores de modo geral é que a prefeitura nunca fez um processo administrativo de encampação.

Após idas e vindas entre iniciativas da prefeitura para levantar as cancelas e liminares a favor da concessionária, em outubro de 2019 a administração municipal do Rio de Janeiro declarou nulo o contrato em edição extra do Diário Oficial e, no domingo, destruiu a praça de pedágio. A Lamsa reverteu a situação no Tribunal de Justiça, mas em setembro do ano passado veio a decisão monocrática do STJ.

Segundo apurado pela reportagem, a destruição da praça de pedágio causou prejuízo de R$ 5 milhões e o impedimento da cobrança de tarifa já resultou em R$ 150 milhões de receita não auferida pela Lamsa. Até o momento nenhum funcionário da concessionária foi demitido - são pelo menos 300 empregados diretos e outros 200 indiretos. 

Recurso corre no STJ e ABCR entrou com ação no STF

Após a decisão do ministro Humberto Martins favorável à prefeitura, a Lamsa apelou ao colegiado do STJ. O recurso começou a ser julgado, mas o ministro João Otávio de Noronha pediu vistas para analisar melhor o processo.

Outra iniciativa foi tomada pela ABCR, autora de uma ação endereçada ao Supremo Tribunal Federal. “Ingressamos com a ação como uma das partes interessadas, não para defender a Linha Amarela, mas para defender a tese de que a encampação precisa observar os preceitos legais. Temos nos posicionado frente à opinião pública e conduzido processos judiciais frente a essa arbitrariedade no Rio de Janeiro”, afirma o presidente Marco Aurelio de Barcelos.

No STF, a ação foi recebida pelo presidente, ministro Luiz Fux, e levada para a pauta telepresencial, onde aguarda apreciação dos demais ministros. Na avaliação de todas as fontes ouvidas pela reportagem do GRI Club, a lógica é que a Lamsa consiga reverter a decisão monocrática do STJ. A preocupação maior, entretanto, é com a insegurança jurídica e o mau exemplo dado aos investidores neste episódio. 

Por Henrique Cisman

GRI Infraestrutura Subnacional Brasil 2021