O futuro dos resíduos sólidos no contexto do novo marco do saneamento básico

Investidores, operadores, autoridades e financiadores debateram o tema em evento promovido por GRI e Demarest

9 de junho de 2021Infraestrutura

Desde a aprovação do novo marco legal do saneamento básico, em julho do ano passado, as discussões sobre a universalização dos serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto e manejo de resíduos sólidos ganharam protagonismo no país. 

Neste contexto, o GRI Club Infra, em parceria com o escritório Demarest, reuniu investidores e operadores do setor, autoridades e bancos para um debate sobre a abordagem dos resíduos sólidos no contexto das novas regras e metas para o saneamento básico brasileiro. 

O evento foi moderado por Bruno Aurelio, sócio do Demarest Advogados, e teve as participações de Christianne Dias (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico), Carlos Silva Filho (Abrelpe), Fabio Ono (Ministério da Economia), Hugo Nery (Marquise Ambiental), Karla Bertocco (Mauá Capital), Laura Bedeschi (BNDES) e Tatiana de Oliveira (Caixa), além das contribuições de outros executivos que acompanharam o debate. 

Agenda regulatória

O componente de resíduos sólidos é o primeiro sobre o qual a ANA tem trabalhado para criar as normas de referência. O objetivo da agência é acabar com os lixões e viabilizar a cobrança pelos serviços de coleta de modo que haja sustentabilidade financeira nas operações. Trata-se de uma mudança cultural, uma vez que o usuário não está acostumado a pagar pelo serviço. 

A consulta pública sobre o tema, realizada entre os meses de março e abril, recebeu mais de 500 contribuições. A diretora-presidente da ANA, Christianne Dias, destacou que a norma deve ficar pronta em tempo hábil para ser aproveitada pelo mercado - titulares, prestadores de serviço e agências subnacionais. É importante destacar que os contratos de programa serão aditivados até o início de 2022. 

A agenda regulatória visa normatizar os instrumentos contratuais e seus desdobramentos, como matriz de risco, regra de caducidade, penalidades e metodologia de indenização de ativos. A ideia é que no momento em que os contratos de programa sejam aditivados, já existam as diretrizes da ANA. 

O papel do governo federal

Além da agência reguladora, também têm papel relevante no assunto os ministérios da Economia, do Desenvolvimento Regional e do Meio Ambiente. Hoje, existem apenas 49 concessões de resíduos sólidos no Brasil e, segundo dados da Abrelpe, no ano passado foram realizados 79 estudos, mas apenas nove contratos foram firmados no setor. 

Neste sentido, o governo federal busca criar condições para que haja maior atratividade e sucesso nas concessões. Segundo Fabio Ono, subsecretário de Planejamento da Infraestrutura Subnacional do Ministério da Economia, há quatro frentes de trabalho para avançar a questão dos resíduos sólidos no Brasil: formação de blocos regionais, implantação de mecanismos de cobrança, estruturação de bons projetos e regulação do setor. 

Em relação ao agrupamento de municípios, no ano passado o Ministério da Economia conduziu um estudo sobre consórcios, entendendo que o marco vigente (Lei 11.107) carece de aprimoramentos para dar mais sustentação aos investimentos. 

Em paralelo, tramita no Congresso o PL 4.679, com vistas a suportar as modelagens dos blocos regionais. O novo marco do saneamento básico fixa o prazo de 15 de julho para a indicação das regiões. Diversos estados já caminham neste sentido, com destaque para a estruturação de Minas Gerais, onde houve a divisão de 32 blocos para o manejo de resíduos sólidos. 

No tocante à viabilidade econômico-financeira, o governo federal defende a implementação de tarifas para a sustentação do setor, mecanismo utilizado por pouquíssimos municípios atualmente. O Ministério da Economia ainda tem desenvolvido estudos com apoio do BID para financiar os projetos, o que inclui a utilização de instrumentos pouco explorados, como green bonds e debêntures de infraestrutura. 

A preocupação com as modelagens também é grande, uma vez que os municípios - principalmente os menores - carecem de corpo técnico qualificado para esse fim, sendo necessário o protagonismo de órgãos federais e a internalização de boas práticas internacionais, vide a lógica de redução de uso, reutilização e reciclagem.  

Competição e vontade política

Segundo a Abrelpe, atualmente metade dos resíduos sólidos produzidos no Brasil tem destinação inadequada, o que coloca o país em uma situação de emergência ambiental e sanitária. Para mudar o panorama, não basta apenas um avanço regulatório, tal como o obtido com o novo marco do saneamento básico. 

Uma pesquisa recente realizada pela ONU na América Latina indica que os três principais obstáculos em relação aos resíduos sólidos são falta de vontade política, escassez de recursos para custeio das operações e aplicação inadequada da verba disponível. A falta de legislação ou regulamentação aparece apenas no décimo lugar, segundo o levantamento. 

De acordo com o diretor-presidente da Abrelpe, Carlos Silva Filho, algumas sugestões da entidade foram incorporadas ao novo marco do saneamento brasileiro, como a contratação dos serviços de forma competitiva e a garantia da sustentabilidade econômico-financeira mediante instrumento de remuneração com a cobrança dos serviços aos usuários. 

Hoje, os municípios arrecadam anualmente R$ 6,5 bilhões para o custeio da limpeza urbana, mas têm uma despesa de R$ 14 bilhões no mesmo período. Mais do que os gastos de OPEX, o setor ainda precisa de investimentos de R$ 10 bilhões em novas infraestruturas até 2031 para receber resíduos que hoje têm destinação inadequada. 

Filho faz uma analogia interessante: “Todas as peças do quebra-cabeça estão à nossa frente. Aquilo que faltava, o novo marco do saneamento trouxe. Cabe a nós, operadores, gestores públicos, órgãos de governo, juntar as peças e montar este quebra-cabeça”.

Lixo ou matéria-prima?

Do ponto de vista das companhias operadoras do segmento, o presidente da Marquise Ambiental, Hugo Nery, assinalou que o tratamento dos resíduos sólidos ainda é visto simplesmente como coleta de lixo. Atualmente, o serviço se resume, em muitos casos, a um transporte de carga das casas para os aterros sanitários - além dos incontáveis lixões espalhados pelo país. 

O Plano Nacional de Resíduos Sólidos transformou, por definição, o lixo em matéria-prima. Isso significa que só deve ir para os aterros sanitários aquilo que não tiver serventia. Este contexto, entretanto, para ser bem sucedido, exige que haja uma transformação da política de limpeza urbana rumo a uma política industrial.

A provocação vai no sentido de que os geradores dos resíduos - os moradores da cidade, portanto - precisam participar do processo, o que vai além do simples pagamento da tarifa. Uma vez que a maior parte do lixo é, na verdade, matéria-prima, é essencial que os usuários façam a separação adequada dos materiais e os entreguem nos pontos de coleta determinados pelas prefeituras. 

Do contrário, o sistema não será sustentável, pois o custo para o transporte das diferentes matérias-primas - plásticos, vidros, papéis, alimentos etc. - será aumentado em quatro vezes para as operadoras (em relação a transportar tudo como lixo único), segundo o presidente da Marquise Ambiental. 

“O Brasil é o maior produtor de proteína e o segundo maior produtor de grãos do mundo, e desperdiça todos os dias algo em torno de 120 mil toneladas de resto de comida, que por estar misturada com outros materiais, simplesmente não serve para compostagem. Se houvesse separação e fosse levada para um biodigestor anaeróbico, teria aproveitamento de 100% dos gás e uma massa composta verde que todo mundo iria querer”, disse Nery.

Outro problema vem do sistema político, com eleições intercaladas a cada dois anos, o que inibe o gestor público - preocupado com a aceitação de seu governo - de adotar medidas que impactam os usuários, seja mediante cobrança de tarifa, seja pela obrigatoriedade de separar e destinar corretamente os materiais nos pontos de coleta. 

A visão dos investidores

Segundo a sócia da Mauá Capital, Karla Bertocco, uma preocupação dos investidores é justamente a regulamentação do papel dos geradores de resíduos sólidos, particularmente os maiores. Isso está relacionado ao conceito de economia circular, que vem na toada de investimentos ESG friendly.

A conta para se realizar o correto tratamento dos resíduos não fecha se não houver a combinação da cobrança de tarifas (que não podem, porém, ser muito onerosas aos usuários) com a identificação de outras linhas de receita.

Outros dois pontos observados com atenção pelos investidores são a regulamentação (ou não) dos créditos de carbono, que podem se caracterizar como uma nova linha de financiamento para o setor, e a regionalização, assim como vem sendo feito nos serviços de água e esgoto. 

Qual é o papel dos bancos?

Alinhados com o posicionamento das empresas operadoras, Caixa e BNDES têm aumentado esforços para incentivar a valorização energética dos resíduos sólidos. A participação do setor nas operações de crédito ainda é muito baixa: no BNDES, correspondem a 5% do total da carteira de saneamento. 

Na Caixa, que desde 1996 é a operadora dos recursos da União destinados às políticas públicas de saneamento básico, apenas 174 contratos foram assinados no período para ações de manejo de resíduos sólidos em estados e municípios, o que corresponde a R$ 75 milhões contratados - ou irrisórios 0,05% dos recursos investidos pela União. 

Em relação ao crédito, nos últimos dois anos a Caixa realizou 911 operações para municípios, totalizando R$ 13 bilhões, mas apenas três (R$ 66 milhões) foram voltadas para a área de resíduos sólidos.

De acordo com Tatiana de Oliveira, vice-presidente de Governo da Caixa, o banco está buscando junto ao FEP (Fundo de Apoio à Estruturação de Projetos de Concessão) projetos-piloto para a realização de PPPs de resíduos. O primeiro edital foi publicado em dezembro e abarca oito municípios do Triângulo Mineiro, sendo Uberaba o município líder. 

Há poucos dias, foi aberta consulta pública para outra PPP, dessa vez em Teresina. “Queremos criar um modelo de contrato de PPP e colocar vários projetos nessa produção. Habilitamos 23 consórcios no ano passado para a esteira de parcerias público-privadas”, disse a executiva da Caixa.  

Segundo Laura Bedeschi, as novas diretrizes e regras trazidas pelo novo marco do saneamento devem resultar em um bom volume de projetos estruturados pelo BNDES nos próximos anos. Licitações de curto prazo não podem mais contratar financiamentos junto aos bancos - apenas as concessões de longo prazo - e a partir de março de 2022 somente poderão ser financiados projetos em estruturas regionalizadas.

“Fazer xis consórcios e montar tantos aterros não vai resolver [o problema] no longo prazo, até porque eles têm prazo de validade. Eles precisam ser usados por 50 anos, e isso depende da valorização de resíduos”, concluiu a chefe do Departamento de Saneamento Ambiental do BNDES.


Por Henrique Cisman