Mercado livre de energia está maduro para ser ampliado, dizem especialistas

Contratações fora do ambiente regulado já correspondem a 32% de todo o consumo no Brasil

16 de abril de 2021Infraestrutura

O Boletim Abraceel de Energia Livre divulgado no mês passado mostra que este mercado já corresponde a 32% de toda a energia consumida no Brasil. O volume impressiona, uma vez que a maioria dos consumidores ainda participa obrigatoriamente do ambiente de contratação regulada (ACR), como os empreendimentos residenciais, comerciais e as pequenas indústrias.

Atualmente, para ser um consumidor livre, isto é, poder contratar energia proveniente de qualquer fonte de geração, o consumidor precisa ter, no mínimo, 1.500 kW de demanda contratada. Também podem participar do mercado livre aqueles que consomem pelo menos 500 kW, desde que a energia seja gerada por fontes incentivadas - usinas solares e eólicas.

O presidente da Abraceel (Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia), Reginaldo Medeiros, explica que durante muito tempo a grande questão dos tomadores de decisão do setor de energia era a viabilidade ou não da abertura do mercado, dúvida que foi superada após um longo trabalho de conscientização liderado pela entidade. 

“A grande questão agora é: quando o mercado será aberto? A liberdade de escolha do fornecedor de energia para todos os consumidores já é uma realidade em vários países do mundo, conforme aponta o ranking de liberdade de energia elétrica, que mostra o Brasil na 55ª posição entre 56 países sobre o tema”, diz Medeiros.

Em todo o mundo, 36 países possuem mercado livre de energia para todos os consumidores. Elaboração: Abraceel

Segundo Adilson de Oliveira, diretor da Accenture, a contratação livre de energia é o melhor sinalizador a fim de identificar para onde o mercado tende a crescer. Além disso, o modelo traz benefícios tanto para os produtores quanto para os consumidores, conforme explica o especialista.

“Para os geradores de energia, fica mais fácil financiar novos projetos de expansão. No ACR, para criar uma nova usina, é preciso disputar o leilão do mercado regulado, no qual alguns projetos ganham e outros, não. Com o mercado livre, existe uma nova avenida para viabilização de projetos, pois a geradora negocia com grandes consumidores contratos de fornecimento de energia de longo prazo (power purchase agreements)”. 

Já para o consumidor, além da liberdade para negociar quantidade e preço, Oliveira ressalta que há garantia sobre a origem da energia contratada, fundamental nas políticas de redução da pegada de carbono das empresas, cada vez mais em evidência no foco das lideranças. 

A superintendente de Novos Negócios da B3, Ana Beatriz Mattos, ressalta que no mercado livre de energia as indústrias conseguem criar estratégias mais sofisticadas para esse insumo. “A distribuidora permanece responsável por transportar a energia, mas o consumidor pode comprar diretamente de geradoras e comercializadoras, ou seja, a cadeia é mais diversificada”.

O CEO do Balcão Brasileiro de Comercialização de Energia (BBCE), Carlos Ratto, acrescenta que no mercado livre é preciso fazer a gestão da energia contratada, o que na maioria das vezes cabe às comercializadoras. “Algumas empresas fazem isso internamente através de suas mesas de energia, mas na maior parte dos casos, a comercializadora é quem garante a entrega”, afirma.

Agentes estão alinhados para o crescimento do mercado livre

Dentre as iniciativas de fomento ao mercado livre de energia no Brasil, Oliveira destaca a portaria 465 do Ministério de Minas e Energia (MME) publicada em dezembro de 2019 estabelecendo cronograma para a redução da quantidade mínima consumida para que a contratação possa ocorrer fora do ACR. 

De acordo com a portaria, desde janeiro deste ano, a demanda mínima necessária de energia contratada caiu de 2.000 kW para 1.500 kW. A partir de 1º de janeiro de 2022, será 1.000 kW; e a partir de 1º de janeiro de 2023, cairá pela última vez para 500 kW, sem a obrigatoriedade de que a contratação ocorra de fontes incentivadas. 

Apesar deste avanço, outras medidas importantes demoram a caminhar, como o PL 414/2021, que visa aprimorar o modelo regulatório e comercial do setor elétrico com vistas à expansão do mercado livre. “O principal desafio é haver vontade política para garantir que todos os consumidores sejam livres para escolher seu fornecedor”, afirma o presidente da Abraceel, Reginaldo Medeiros. 

O PL mencionado tramitou durante 5 anos no Senado (PLS 232) e está há dois meses parado na Câmara dos Deputados. De toda maneira, o diretor da Accenture, Adilson de Oliveira, explica que dificilmente será possível acelerar a transição prevista pelo MME, pois ainda cabe ao mercado regulado financiar a grande expansão do sistema. 

“Novas usinas são autorizadas em função dos leilões que a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) promove e o lastro desses leilões é a contratação que as distribuidoras vão fazer. Tudo isso é amarrado em contratos que têm penalidades. Se a distribuidora não consome o que prevê o contrato, é obrigada a comprar energia pagando o preço horário de liquidação de diferenças (PLD)”.

Em outras palavras, o especialista enxerga que se a migração para o mercado livre for muito rápida, pode haver problemas no financiamento da capacidade de expansão do ACR e nos contratos assinados entre geradoras e distribuidoras no mercado cativo. “A questão é calibrar o timing correto dessa migração para que o mercado livre possa florescer sem causar grandes rupturas no mercado regulado”, ratifica o diretor da Accenture.

Além do papel do regulador, Ana Beatriz Mattos destaca o trabalho realizado pelas comercializadoras para acessar os novos potenciais consumidores do mercado livre de energia. “Não basta o consumidor poder migrar. Ele precisa entender como funciona este mercado, quais são os produtos, as estratégias, para então ver vantagem e efetivar a migração”, assinala a executiva da B3.

O CEO do BBCE, Carlos Ratto, ressalta que as novas plantas de geração (business plan) já estão muito mais voltadas para a venda no mercado livre. “A geração hoje prevê muito mais a destinação para o mercado livre do que para o regulado, então ele já está crescendo muito, principalmente nas fontes incentivadas”. 

Segundo o boletim da Abraceel, 72% dos empreendimentos de geração em desenvolvimento no país - no horizonte de 2021 a 2025 - são destinados ao mercado livre, o que representa cerca de R$ 100 bilhões em investimentos. 

Parques eólicos se destacam no Brasil, principalmente no Nordeste. Foto: porojnicu/Envato

Ratto concorda, porém, que medidas importantes precisam avançar com maior celeridade nos órgãos reguladores. “É um mercado maduro que tem cerca de 400 comercializadoras, passou por algumas crises e cresceu com elas. O desafio de consolidação foi superado e a estrutura está pronta para receber mais consumidores no mercado livre”, afirma.

Ana Beatriz Mattos acrescenta outras duas barreiras importantes a serem superadas: primeiramente, o elevado risco sistêmico: “Em comparação com os mercados internacionais, a gente não tem uma estrutura de garantias nem uma clearing, o que faz com que o risco de contraparte exista. Precisamos criar mecanismos de transparência e liquidez para reduzi-lo”. 

Um segundo desafio, conforme aponta a superintendente de Novos Negócios da B3, é aumentar a utilização de instrumentos financeiros: “A B3 tem algumas ferramentas disponíveis desde 2015, como os derivativos de energia, mas eles são pouco utilizados. Há vários riscos que poderiam ser mitigados via instrumentos financeiros e ainda não vemos essa utilização”, diz a especialista.

Segundo o CEO do BBCE, Carlos Ratto, os derivativos são importantes para o crescimento do mercado livre de energia: “No momento em que há um instrumento que permite às empresas fazer hedge com liquidez, isso dá mais segurança para que elas migrem para o mercado livre sabendo que podem se proteger das oscilações de preço”.

Entre avanços já realizados e desafios a serem vencidos, é consenso que o mercado livre de energia é o futuro do setor, segundo os especialistas. “Isso já é realidade em outros países; mais até do que a possibilidade de escolher o fornecedor, existe o modelo consumidor-produtor, ou seja, todo mundo pode produzir e vender sua energia. Nossa regulamentação ainda não permite isso, mas já se discute”, aponta o diretor da Accenture, Adilson de Oliveira.

Em relação a outros países, porém, é preciso reconhecer as particularidades do mercado brasileiro de energia, cuja principal matriz são as hidrelétricas. “Embora isso seja muito positivo, pois é uma matriz limpa, não existe um país de referência para o Brasil se inspirar. Temos que pegar elementos de vários países e customizá-los à realidade brasileira”, completa o especialista. 

Alguns exemplos mencionados vêm da Europa Ocidental, como Alemanha, França e Inglaterra, bem como estados norte-americanos, como a Califórnia e o Texas. Segundo Ratto, também é possível espelhar algumas características de países nórdicos e até mesmo do Chile. 

Ana Beatriz Mattos, da B3, destaca que tais avanços dependem da transparência e da segurança apresentadas aos consumidores. “Se pensarmos em outros países, hoje há empresas na Inglaterra que avisam ao consumidor residencial quando as eólicas estão jogando mais energia no sistema, pois esse fato a torna mais barata, então seria um bom momento para carregar o carro elétrico. São iniciativas para que não apenas haja um mercado livre, como para que ele seja saudável”.

O papel da iniciativa privada na abertura do mercado livre

Carlos Ratto explica que o BBCE é uma plataforma de negociação para que as comercializadoras possam fazer a gestão da energia no mercado livre: “Ao invés de a comercializadora buscar no mercado alguém para comprar ou vender energia, usa o BBCE como esse ponto de ligação. Ela garante à empresa que terá a compra da energia registrada todo mês, e depois vem ao mercado para comprar a energia que acabou de vender ao cliente”. 

A comercializadora, por sua vez, é um intermediário fundamental para que as empresas tenham tranquilidade de firmar um contrato que garante o fornecimento de energia a um preço pré-determinado. Segundo Ratto, grandes empresas que criaram suas próprias mesas de energia também utilizam o BBCE. 

Como consequência da existência deste balcão, o volume total negociado no mercado livre de energia brasileiro é quase cinco vezes maior do que o consumo, conforme ilustra a imagem abaixo com dados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). “Essa negociação gera oportunidades para as comercializadoras”, pontua Ratto. 

Volume total negociado no mercado livre é 4,43 vezes maior que o consumo. Fonte: CCEE

Em alguns estados, o mercado livre de energia já tem uma média de participação na casa dos 50%, como no Pará (54%) e em Minas Gerais (49%). No ano passado, o setor movimentou R$ 122 bilhões e gerou economia na ordem de R$ 225 bilhões para os usuários, conforme o mesmo boletim da Abraceel.  

Em busca de tornar o mercado livre de energia mais seguro e sofisticado, a B3 lançou no fim do ano passado uma nova plataforma que traz o Selo de Confiança da B3 para o Mercado de Energia. “Este selo revela o nível de governança de cada um dos agentes que voluntariamente aderem ao regimento da B3 e também se esse agente opera dentro da capacidade financeira segundo os nossos modelos de risco, que são públicos”, revela Ana Beatriz Mattos.

“A partir desse produto e de outros que ainda vamos disponibilizar, o nosso foco é levar boas práticas e fomentar um mercado mais robusto visando criar uma clearing”, completa a executiva. Tal como no mercado de ações, a B3 pretende assumir o risco de contraparte, que ainda não existe no mercado de energia e é uma demanda de todos os agentes.

A Accenture, por sua vez, tem apoiado centenas de clientes - comercializadores, geradores e consumidores de energia - na revisão de estratégias e modelos de operação para atuar no mercado livre tal como ele é hoje e considerando os cenários de evolução no futuro. “Temos sentido cada vez mais tração dos clientes nesses temas e acreditamos que é um caminho promissor para o país”, encerra Adilson de Oliveira.


Por Henrique Cisman